Sugestão de música: https://www.youtube.com/watch?v=doRJ-NgvCfI
– Rasgado. Foi assim que eu me entreguei a você quando disse
que não buscava novos laços, mas conforto. Um pouco de carinho. Levemente,
cada palavra dita, foi me remendando. Como mãos trêmulas de uma senhora idosa
tentando costurar os retalhos, passamos tão rápidos e intensos, que me senti
remendado por uma máquina de roupas que produz toneladas por hora. Eu consegui
encontrar o conforto. Eu, iludido em meu próprio bem, demorei pra notar que
todo o meu conforto remendado tinha sugado toda sua linha. Cada ponto dado em
mim, era um pedaço seu que se abria. Não vou carregar essa culpa sozinho, não
foi maldade minha. Você me iludiu com o conforto e carinho, mostrando-se tão
remendado quanto eu. Tão pronto, tão já. Tão intensos, tão juntos. E do nada a
sua linha acabou. A gente tinha acabado de se beijar quando o último ponto fora
feito. Desabamos juntos, frente a frente. Eu todo remendado. Você todo rasgado.
E então você foi cruel como qualquer outra pessoa com medo é capaz de ser.
Agarrou todos os seus pedaços e jogou-os por cima de um muro alto, grosso e
impenetrável. Me olhou com olhos mais frios e egoístas, me disse que era pra
que ficássemos bem. E pulou muro a dentro. Não conseguia aguentar aquela dor e
comecei a lutar. Eu tentei pular o muro, escalar, quebrar as pedras ou até
cavar por baixo dele. Eu tentei de todas as formas, das mais sãs e educadas às
doloridas e infelizes. Eu perdi muita linha nesse muro. Eu me arranhava,
desfiava, rasgava. Eu tentava te ver de novo e tudo o que eu conseguia era
ouvir a sua voz. Você não estava sozinho nesse muro. Você tinha seus amigos.
Sua família. Você tinha uma república inteira dentro de teus muros protegidos.
Ah, eu não estava sozinho também. Quando dei por mim, rasgado inteiramente de
novo, notei que meus amigos estavam ali. Cabisbaixos, tristes, com pena de mim.
Ganhei abraços, ganhei carinho, ganhei consolo. Cada um tirava um pedaço de
pano de si pra me dar. Cada um tentava mostrar pra mim que eu ainda iria
conseguir me remendar. Só demorei pra notar que muro adentro, você já estava
remendado. Não seria justo com os meus amigos gastas o pano e a linha que me
deram pra derrubar esse teu muro. Pra conseguir estar remendado e remendando
junto com você. Foi nesse momento que eu beijei o muro e deixei nele um dos
pedaços de mim que eu mais gostava. Um dia, você sairia desse lugar. Nesse dia,
espero que encontre esse pedaço que eu deixei e remende-o como uma lição. Mais
que tudo, espero que seja feliz. Estou sendo remendado agora mesmo. Eu fiquei
com medo da chuva de hoje e comecei a construir um muro também. Acho que todos
precisamos do nosso asilo. Agora busco, na segurança do meu, remendar-me só. O
que virá depois é muito cedo pra se pensar. Mas hoje, nessa noite de chuva,
meio protegido por esse muro que ainda é pequeno, achei um remendo seu que
sobrou em mim.
– Essa é sua metáfora, Felipe? – O doutor me perguntou.
– Você só me disse pra falar. Me diz você, cara.
O que é isso?
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