segunda-feira, março 23, 2015

Paranóia da Saudade

Eu estou com frio, amor,

Já é segunda-feira e logo teremos outra “chance” pra começar a fazer a mesma coisa de sempre. Parece loucura dizer isso, mas é como dar corda em um boneco de gesso. Acho que não teremos grandes novidades, não teremos grandes mudanças. E, pare com isso, não estou sendo um pessimista carente! Estou sendo um realista embaraçado, apenas. Eu só estou com medo de seguir em frente. É só isso...

Eu lhe prometi que não beberia todos os dias, mas acho que bebendo o equivalente a todos os dias em um só é uma maneira de burlar essa promessa. Ou assumir que não sou capaz de mantê-la. Sim, minha vida, eu estou bêbado outra vez! Eu te asseguro que, dessa vez, é a última... E também, convenhamos, não precisa se preocupar. Estou em casa hoje. Estou procurando a minha casa. Não sei exatamente o que é isso, mas estou aqui.

Eu não sei o nome, quanto menos como descrever esse fenômeno da natureza que está acontecendo agora. Vou tentar: o chão está molhado, levemente. É como se estivesse começando a garoar, mas não tem garoa alguma caindo. Eu estou sentado no jardim e esse pulguento, que deveria ser meu melhor amigo, não para de abanar o rabo e buscar uma maldita bolinha pra que eu jogue longe outra vez.

Até que não demorou muito pra ele entender que eu não vou mais poder jogar a bolinha. Agora ele se deitou do meu lado e colocou a cabeça na minha perna. Não sei se ele está triste por mim ou se ele tem problemas a compartilhar. Eu só sei que vou ser bem egoísta com ele, essa noite. Serei egoísta com todo mundo. Perdoe-me com antecedência, mas serei ainda mais egoísta com você, meu amor.

Me lembrei agora das juras de amor que te fiz todos esses dias em que estivemos juntos. Ah, como foi gostoso. É muito gay ser romântico hoje em dia, mas foda-se o romantismo atual. Eu fui egoísta o tempo todo em que estive com você. Cada jura de amor era uma necessidade de te fazer sorrir. Como posso ter sido egoísta fazendo isso? Seu sorriso era a única garantia da minha felicidade. Eu fui feliz. Eu sou feliz. Eu acho que te fiz sorrir o bastante e recebi um belo pagamento. Vou considerar aquele seu olhar de quando não sabe o que me responder como o meu décimo terceiro salário.

Amor, por falar em salário... Eu me demito. Eu abro mão da minha rescisão de contrato e, dessa forma, recusarei me despedir de você pessoalmente. Eu não quero receber ou retirar nada do meu fundo de garantia. Não tenho mais nenhuma garantia com você, comigo, conosco. Não tenho mais garantia alguma. Ah! Minto! Eu acabei entregando um currículo há uma ou duas semanas. Fiz uma entrevista e parece que consegui a vaga.

O acordo foi fechado e o cachorro não para de latir. É um emprego definitivo e sem chance de demissão. Uma vez dentro, não tenho mais como deixar o cargo. É loucura, eu sei. Pode culpar o álcool, a chuva, o frio ou o cachorro latindo pra porta de casa desesperadamente. Ainda não entendi. Ele corre até a porta, late, corre até mim e repete tudo outra vez. E eu ainda sou o único louco dessa história, não é?

Enfim, sem mais metáforas sobre paixões, contratos e empregos. Eu realmente estou bêbado e, somente assim, eu conseguiria me sentar no jardim nessa madrugada e escrever essa carta ridícula pra dizer que estou com saudades. Eu te amo! Eu só não sei se fui o bastante ou se sou bom nessa arte dramática que é amar alguém. Amar você.

Acho que já entendi o que o cachorro está fazendo. Ele também está com medo. Acho que ele viu a faca do lado da lata de cerveja. Esperto... É hora de parar de gastar papel. Ao amanhecer, será apenas cerveja quente, um pedaço de papel manchado de tinta e água e um cadáver ao lado de seu melhor amigo.

Se Deus está na chuva, ele me batizou com o seu perdão. Se demência vem em forma de lata, atestei-me profunda paranóia e me cortei. Poderia fazer algum trocadilho com o sangue e o frio, mas não consigo. Estou com muito frio, amor. Estou me despedindo e não tenho um motivo para isso.


E em forma de adeus, espero que nunca veja essas palavras. É só uma loucura que escrevi quando olhei pro relógio e vi que a segunda-feira tinha começado e que só voltaria a ver seu sorriso em um sábado. Ainda distante, eu continuo vivo, literariamente morto de saudade. 

quinta-feira, março 19, 2015

É pra felicidade deles...

São três e vinte e cinco e o relógio me acorda, mas como sou brasileiro e não desisto nunca, faço ele me esperar por mais cinco minutinhos na minha cama.

Já atrasado, vou para a cozinha e procuro uma jarra com água da rua do dia anterior. Ficamos sem água em casa da “uma da tarde” até dar o horário das crianças acordarem. É essa água que eu uso pra começar a fazer o arroz e o feijão.

Depois de tomar banho com o que sobrou da água da comida, termino de me arrumar. O sapato já está velho e furado, mas precisa aguentar mais dois ou três meses pra eu ter dinheiro pra comprar outro.

Coloco a comida pronta na geladeira nova que comprei. O "friizi" dela não funciona, uso como armarinho dos pratos. Quando as crianças chegarem elas só vão precisar colocar a comida no prato e pedir pra Dona Cecília, minha vizinha, pra esquentar pra eles. Era um microondas ou “o óculos” do Pedro Henrique. Ele é mais importante pra mim.

As quatro e meia eu já estou na rua. Douglas vai passar aqui pra me levar até o terminal. Ele é o motorista. Somos quase irmãos, foi ele quem me arrumou o emprego de cobrador.

Pouco antes das cinco, já estamos no terminal de ônibus.  Tem muita gente lá. Eu cobro a passagem e dou bom dia pra todo mundo. Até já sei o nome de um ou outro. Eles sabem o meu também.

Depois de uma hora e meia, às vezes é duas por causa do trânsito, a gente vai chegando no metrô.
Quando o ônibus para, eu me levanto. Eu olho pra parte de trás e grito: senhores passageiros, tenham um bom dia e um bom serviço, aí o Douglas abre a porta pra eles saírem.

Quase nunca me respondem, mas é legal. Tem dias que alguém me responde e me dá até algumas balas. Eu guardo todas elas e levo pra casa.


Não tem nada melhor que ver o Pedro Henrique e o André Luis sorrindo e me abraçando por causa desses doces. Eles sempre pedem mais e eu continuo sempre com o bom dia. É pra felicidade deles


[ crônica baseada em um diálogo real ]