segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Um Fruto de Amor

Era fim de tarde de uma quinta-feira chuvosa em São Paulo, quando ela chegou. Com um vestido rosa e vermelho, cheio de flores e gotas de chuva, um arco tentando segurar os lisos fios de cabelo molhado e um sorriso que mulher alguma poderia me dar.

Carolina era deficiente auditiva. Não conseguiu ouvir uma palavra do que eu dizia, quanto menos respondê-las. Mas seus olhos acompanhavam tudo o que eu queria lhe dizer e ela me respondia com sorrisos. Foi assim no começo. Éramos jovens e tínhamos muitos sonhos. Um deles, sozinho eu quis seguir. Carolina ficou em São Paulo e eu fui estudar em Portugal, com uma promessa de nunca esquecê-la.

As cartas eram intensas no começo. Começavam com amor e terminavam com saudades. No fim, começaram com saudades e, simplesmente, terminaram. Anos fizeram com que eu esquecesse aqueles olhos apreensivos e seu sorriso encantador, assim como meus gestos acabaram se tornando rotinas administrativas de uma vida profissional sem amor.

Depois de quase dez anos fora, até à terra de palmeiras e sabiás eu viajei, já sem lembrar que um dia fizera uma promessa de amor eterno naquele lugar. Já sem lembrar que aquela cidade tinha sido flores e músicas, mas não passava de lágrimas de chuva. São Paulo estava mais cinza e fria do que eu me lembrava e não havia Carolina para colorir meus pores-do-sol. Meus dias se tornaram amargos como café e eu insistia em não adoçá-los, pois não me lembrava qual era o açúcar.

Como escritor, consegui lançar a continuação de um grande livro em uma livraria famosa no centro da cidade. Pessoas importantes e fãs vieram ao meu encontro, admirando e bajulando-me. Não eram amigos. Não eram importantes. No fundo, nem eu tinha alguma importância para eles. Acabaria sendo esquecido, uma hora. Apenas sorria e assinava livros com mensagens positivas que eu discordava em cada letra.

Uma garota se aproximou e me entregou um livro molhado. Um exemplar velho em estado crítico de “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, junto com uma maçã já mordida. Eu demorei pra entender o significado daquele livro e da maçã, até reconhecer aquele mesmo vestido rosa e vermelho, cheio de flores e gotas de chuva. Um pouco mais curto, assim como os cabelos dela, que pingavam sem parar. Não havia nenhuma vontade de esconder as rugas que surgiam com o enorme sorriso que Carolina me dava.

Tudo o que eu estudei, aprendi, escrevi ou vivi desde que a deixara com a promessa de que minha vida pertencia a ela, se apagou. Todos os sorrisos que recebi dela como resposta, junto ao silêncio de sua voz me vieram à mente e pude perceber que tudo o que fiz na minha vida, sozinho, não passavam de letras apagáveis. Enquanto tudo o que fiz ao lado de Carolina, valia mais do que mil páginas de uma história de amor.

Não dei mais autógrafos, apertei mãos ou escrevi livros de drama ou romance. Eu me entreguei para a garota que me dizia “eu te amo” desenhando um coração no peito todas as noites antes de dormir e pude viver, eu mesmo, uma história real de amor. A minha história.

Quando Carolina morreu, já em minha velhice, pude perceber que a essência do homem não está naquilo que ele tem ou sonha ter, mas no que ele faz por amor sem desejá-lo tê-lo de volta. Era somente isso que eu precisava para ser feliz.

Plantei uma macieira ao lado direito da lápide que indicava o repouso infinito de Carolina e instruí meus filhos que me enterrassem à direita da árvore. Quase que “lado a lado”, descansaríamos entre a árvore que gerava os frutos que mais partilhávamos: frutos doces e vermelhos, que chamávamos de amor.